Twitter Files CIA: agência tentou controlar conteúdo na rede social. Até o Brasil foi afetado

Nina Jankowicz, ligada ao Grupo Alethea que atuou pela censura dentro do Twitter, dando uma palestra sobre cibersegurança, em 2019, na embaixada americana em Viena | Foto: Embaixada dos EUA em Viena

Conexões entre personalidades da indústria do combate à "desinformação" e a inteligência americana


Documentos da rede social X (antigo Twitter) tornados públicos nesta quinta-feira (23) indicam que a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos buscou tomar controle da moderação de conteúdo na rede social entre 2021 e 2022.

Entre os desdobramentos dessa tentativa da CIA, uma empresa contratada pelo Twitter para sinalizar suposta desinformação, com conexões com a agência, dedicou-se a analisar a "instabilidade política" no Brasil em 2022 e a "coletar e analisar ameaças de desinformação relacionadas às eleições" presidenciais daquele ano no país.

Além disso, os documentos mostram que o esforço de censura na rede social teria envolvido um agente sênior de inteligência que investiu anos no desenvolvimento de tecnologias para evitar mais vazamento de informações por delatores, como aconteceu nos casos de Edward Snowden e Julian Assange (Wikileaks); Nina Jankowicz, que estava cotada para liderar o Conselho de Governança da Desinformação do governo Biden, do qual a administração desistiu após reação do público, que considerou a iniciativa como uma espécie distópica de "Ministério da Verdade"; e Jim Baker, um ex-conselheiro do FBI que foi empregado como conselheiro no Twitter pré-Elon Musk e foi um dos responsáveis pela censura da rede social à reportagem verdadeira a respeito do laptop de Hunter Biden, filho do atual presidente americano, durante a campanha presidencial de 2020.

Deixado em uma loja de penhores, o laptop tinha informações sensíveis, como fotos comprometedoras e e-mails em que Hunter teria articulado uma aproximação de seu pai, então vice-presidente de Barack Obama, com a empresa de energia ucraniana Burisma. A supressão da notícia, que foi um furo do jornal New York Post, nas redes sociais pode ter favorecido a vitória de Joe Biden nas eleições de 2020.

As informações, publicadas no X, são dos jornalistas Michael Shellenberger (que atuou nos Twitter Files Brasil), Matt Taibbi (ex-repórter da Rolling Stone, editor-chefe da newsletter Racket News) e Alex Gutentag (editora da newsletter Public, de Shellenberger). Shellenberger informou que os documentos são distribuídos por milhares de páginas de comunicações internas do Twitter.

Para a Gazeta do Povo, Shellenberger disse que as revelações são importantes "porque mostram que a comunidade de inteligência americana estava usando a mesma tática totalitária que os Twitter Files Brasil mostraram que Alexandre de Moraes praticou: o banimento total de indivíduos desfavorecidos de todas as plataformas de rede social".

Conexões entre personalidades da indústria do combate à "desinformação" e a inteligência americana

O Twitter pré-Musk trabalhava com uma firma de consultoria "antidesinformação" chamada Grupo Alethea, que em 2021 empregava Nina Jankowicz e Cindy Otis, uma ex-analista da CIA. Ambas são autoras de livros próprios nos anos anteriores que avançavam a narrativa de esquerda de que a “desinformação” seria uma ameaça singularmente importante para a democracia no Ocidente, chamando por mais controle estatal sobre a expressão.

O livro de
Otis cita nos agradecimentos um famoso hacker, Peiter Zatko (codinome "Mudge" enquanto hacker), que também assina uma sinopse elogiosa incluída na obra. Zatko, com passagem pelo governo americano, foi contratado pelo Twitter "para cuidar de tudo, de erros de engenharia à desinformação" (nas palavras da agência Reuters) em outubro de 2020, três meses depois de as contas de Joe Biden, Barack Obama, Michael Bloomberg e Elon Musk na rede social serem invadidas por um hacker de 17 anos, preso pelo crime.

A relação de Zatko com o Twitter azedou dois anos depois, quando os e-mails internos da empresa indicam que ele formou conexões com as agências de inteligência para fornecer dados da rede social (segundo seus próprios executivos). O hacker processou o Twitter e aceitou um acordo extrajudicial pelo qual recebeu US$ 7,75 milhões (R$ 40 milhões na cotação atual), mas continuou o conflito entrando com uma queixa junto ao Departamento de Justiça e mais dois órgãos dos EUA acusando os executivos de negligência na proteção de dados dos usuários e violação de acordo anterior com a Comissão Federal de Comércio (FTC).

Houve vazamento da queixa para o jornal Washington Post, levando à produção de um documento de controle de danos de imagem na rede social em agosto de 2022. O documento, revelado agora, diz que "sem o conhecimento ou apoio da administração ou Conselho Executivo, o Twitter descobriu que Zatko estava em contato com membros de agências de inteligência dos EUA e buscou estabelecer um acordo formal que permitiria que ele trabalhasse com eles e lhes fornecesse informações".

Uma das denúncias de Zatko envolvia suposta espionagem chinesa dentro do Twitter, mas os órgãos do governo americano não a corroboraram. O hacker prestou diversos serviços para as agências de inteligência, incluindo uma caça a delatores como Snowden durante o governo Obama. Michael Shellenberger acredita que ele ainda pode ser ligado à CIA ou outras agências de inteligência e que suas atividades de aproximação entre Alethea e o Twitter não foram coincidência, mas uma possível tentativa da comunidade de inteligência de controlar por dentro a rede social e seu poder sobre a expressão pública.

A pressão da inteligência por acesso ao Twitter é antiga. Um email de 2019 para a redes social, assinado por Elvis Chan, um representante do FBI para as redes sociais, pedia aos executivos que alterassem as políticas da empresa para que as agências de inteligência tivessem acesso facilitado aos dados. Chan disse que a solicitação partia de seus “colegas no Forte”, uma conhecida gíria para a NSA (Agência de Segurança Nacional), entidade que os documentos publicados por Snowden em 2013 revelaram que teria espionado até mesmo o governo brasileiro junto com a CIA.

O chefe de segurança do Twitter na época, Yoel Roth, comentou a solicitação em janeiro de 2020. Para ele, colaborar não era "uma boa ideia", e que era preciso haver um equilíbrio entre manter as agências de inteligência "engajada nos problemas de integridade das eleições" e "manter nossa posição firme contra a vigilância" dos agentes. Ele decidiu por ignorar Chan até que ele reiterasse o pedido, com a esperança de que fosse esquecido na movimentação de início de ano, ou falar com o agente em particular que não podiam discutir decisões específicas a respeito de acesso a dados.

O diretor de políticas da rede social na época, Carlos Monje, respondeu a Roth que "vimos um esforço contínuo (se descoordenado) da comunidade de inteligência de fazer pressão sobre nós para compartilhar mais informações e mudar nossas políticas" de acesso a dados.

Um ano depois, no dia seguinte ao ataque de apoiadores de Donald Trump ao prédio do Capitólio em Washington DC, Zatko recomendou que o Twitter contratasse o Grupo Alethea, "pelo ângulo da desinformação". A cúpula consentiu. No mês seguinte, o hacker sugeriu que o grupo expandisse suas operações para incluir o tema do 6 de Janeiro e "a eleição de 2020 em geral".

Empresa de consultoria em fake news contratada pelo Twitter tem múltiplas ligações com a CIA

Não é apenas a passagem de Cindy Otis pela CIA que liga o Alethea à inteligência americana. O grupo de consultoria contra fake news compartilha um membro de seu conselho executivo com o conselho da empresa IQT, Ted Schlein. Schlein trouxe em 2022 mais de US$ 10 milhões em investimentos no Aletheia. A IQT é uma empresa de investimento de risco que diz em seu próprio site que "foi fundada em 1999 (...) [pela] CIA e agências do governo". Segundo o Wall Street Journal, ao menos um terço dos investimentos da IQT foram secretos em 2016.

Schlein disse aos jornalistas dos Twitter Files que não conhece Zatko, Jankowicz ou Otis. Sobre a IQT ter investido diretamente no Grupo Alethea, ele afirmou que “é uma pergunta que só a empresa ou a IQT deveriam responder, não eu”. Ele é membro do conselho consultivo do Departamento de Segurança Interna (DHS), órgão estatal antiterrorismo criado em 2001 por George W. Bush, envolvido em outros esforços de censura revelados por edições anteriores dos Twitter Files.

Outro analista empregado pelo Alethea é Patrick Conlon, que foi empregado entre 2019 e 2022 no Twitter como líder global de inteligência sobre ameaças. Conlon é um poliglota (fala português, mandarim, russo, ucraniano e mais quatro línguas) que também trabalhou no período anterior (desde 2013) como analista e linguista para o Departamento de Defesa. Os arquivos do Twitter mostram que Conlon era um entusiasta de inovações de moderação de conteúdo que pudessem afetar Donald Trump e aplaudiu um esforço de identificação dos manifestantes do 6 de Janeiro pela via do uso desonesto de aplicativos de encontros românticos.

E-mails internos do Twitter mostram que Jim Baker (ex-FBI) buscou vincular os relatórios de inteligência produzidos pelo Alethea à empresa subsidiária jurídica do Twitter, para poder protegê-los de pedidos de informação do Congresso através do sigilo entre advogado e cliente. "Se não fizermos nada", escreveu Baker em março de 2021, "os materiais produzidos pelo Alethea não teriam privilégio e seria quase impossível nos recusarmos a fornecê-los ao Congresso".

Lisa Kaplan, diretora executiva do Grupo Alethea, falou no mesmo dia em aparição pública que o trabalho da firma era capaz de "traçar uma linha direta" entre "narrativas" de apoiadores de Trump a respeito de suposta fraude nas eleições e "organização que culminou no 6 de Janeiro" (é uma referência ao dia de 2021 em que um grupo de apoiadores de Trump invadiu o prédio do Capitólio, do Congresso americano, na tentativa de reverter o resultado das eleições presidenciais favorável a Biden. Uma manifestante foi morta por um segurança). Falando aos repórteres autores das revelações, Kaplan negou que tenha trabalhado para agências do governo americano dentro ou fora da comunidade de inteligência.

Um dos relatórios produzidos naquele ano pela empresa alega que os funcionários do Twitter estavam sobrecarregados e despreparados para lidar com desinformação da teoria da conspiração QAnon (que alega que o governo dos Estados Unidos é controlado nos bastidores por um cartel de pedófilos que consomem o sangue de crianças) e a respeito da Covid-19. A recomendação da Alethea era que o Twitter fizesse mais uso de seus próprios serviços e de parceiros ligados ao DHS, como o Observatório da Internet de Stanford. O observatório fez parte dos esforços de censura durante a pandemia e as eleições presidenciais americanas.

Zatko circulou em março de 2021 um pedido ao governo Biden pela escalada da censura online, ou "moderação de conteúdo mais vigorosa" em parceria "com empresas de rede social para desenvolver padrões da indústria". O pedido vinha na forma de um relatório escrito por diversos autores de ONGs e organizações acadêmicas (como Harvard), inclusive Vivan Schiller, do Instituto Aspen, uma organização que dispõe de milhões de dólares em verbas do Departamento de Estado, também envolvida nos esforços de censura trazidos à tona pelos Twitter Files.

Ambições incluíam tirar sites do ar e prejudicar financeiramente os censurados

Em abril de 2021, o Grupo Alethea produziu um documento de recomendações com 32 páginas que foi compartilhado com o setor jurídico do Twitter. A principal recomendação era que a rede social se tornasse líder na indústria em capacidade de combate a "ameaças de inteligência". Isso seria possível se os executivos "expandissem parcerias formais e informais" com empresas de hospedagem de domínios (endereços de sites), de marketing digital e plataformas de serviços financeiros "tais como Amazon Web Services, GoDaddy e PayPal".

Com essas parcerias, o Twitter poderia responder "a atores de ameaças de forma mais holística". Ou seja, não apenas censurar pessoas em suas plataformas, mas acionar seus colaboradores para tirar seus sites do ar ou interromper doações via PayPal. O grupo também queria que o Twitter terceirizasse o poder de decisão "no tocante à desinformação".

Os especialistas em desinformação queriam que o conteúdo que assim rotulassem caísse num "vácuo" inacessível para os usuários da rede social. "Isso poderia incluir proibir conteúdos de serem carregados de outros sites, encaminhar os usuários para uma página de erro, fazer com que os adversários inadvertidamente tuítem fotos de cachorros, receitas de quinoa ou pontuações de esportes".

O grupo também tinha a ambição de usar o Twitter para investir em um programa de ensino de "alfabetização digital" para alunos de ensino médio e universitários.

Em contato com os jornalistas, Nina Jankowicz disse que nunca viu essas recomendações. "O meu papel era totalmente voltado ao que viesse de fora", afirmou. A diretora-executiva do Alethea, Kaplan, disse que nunca defendeu a censura "e as suas alegações são falsas". "Sinalizei comportamento inautêntico coordenado ou o que o atual dono do X, Elon Musk, chama de 'robôs de spam'", completou.

Brasil virou alvo da empresa ligada à CIA

Apesar de as sugestões resultarem em perda de autonomia para a rede social, a tendência dos executivos era de aceitação. Os documentos mostram que Yoel Roth e Vijaya Gadde, a diretora jurídica do Twitter, liberaram dados confidenciais de usuários para o Grupo Alethea nos meses seguintes, e em agosto de 2021 estavam já terceirizando decisões para uma firma de advocacia, Jenner & Block, a respeito das conversas tidas por usuários da rede social referentes ao ataque ao Capitólio, com ajuda do grupo, com o qual assinaram um contrato de trabalho com valor de até US$ 600 mil (mais de R$ 3 milhões).

Nina Jankowicz estava listada no contrato como "diretora técnica de pesquisa". Em depoimento para o Comitê Judiciário da Câmara dos EUA em abril de 2023, ela disse que serviu como boi de piranha do DHS quando houve uma relação bipartidária contra o abortado Conselho de Governança da Desinformação do governo Biden. Ela pode ser mais importante que isso: de 2022 a abril de 2024, Jankowicz trabalhou para o Centro pela Resiliência Informacional, uma entidade que recebe verbas dos governos dos EUA, Reino Unido e Austrália.

Antes, em 2013, trabalhou no Leste Europeu para o Instituto Nacional de Democracia (NDI), ligado à Fundação Nacional para a Democracia (NED), criada pelo Congresso americano. Muitos analistas acreditam que o NED está ligado à CIA. "Essa é uma afirmação falsa", disse Jankowicz aos jornalistas dos Twitter Files. "Feita repetidamente pelo Kremlin", completou, reiterando que ela faz oposição "veemente" à censura.

Entre os propósitos opcionais do trabalho estava desvendar "como o então presidente Trump ou outras figuras importantes violaram as políticas do Twitter". Zatko foi demitido em data próxima à que o contrato foi firmado.

Em julho de 2022, o Twitter deu ao Grupo Alethea a função de "assessorar na coleta de fatos e análise de ameaças de desinformação relacionadas à eleição de 2022 no Brasil”. Em 4 de agosto daquele ano, Yoek Roth disse a um colega de empresa que o grupo estava "provendo serviços a nós com um desconto de mais de 50%" para uma análise de desinformação relacionada ao Brasil.

Jankowicz atuou nos esforços do grupo a respeito do Brasil. "Elogiei as empresas de rede social por removerem postagens que alegavam que a Covid-19 era algo que os brasileiros não deveriam levar a sério no ápice de uma pandemia letal que acabou tirando 700 mil vidas brasileiras", disse. "Ainda acredito que foi a decisão correta". Em 7 de abril de 2020, ela elogiou a remoção de conteúdos do então presidente Jair Bolsonaro das redes sociais.

"Foi graças às tentativas recentes de Jankowicz de reabilitar a sua imagem que descobrimos o papel do Grupo Alethea", comentou Shellenberger na postagem original dos Twitter Files CIA. Sem ela, "o episódio todo teria sido perdido para a história".

*Com informações da Gazeta do Povo

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