Divergências entre Lula e Milei sobre futuro do Mercosul marcam cúpula na Argentina

Lula e Milei na cerimônia de transmissão da Presidência Pro Tempore do Mercosul da Argentina para o Brasil (Foto: Ricardo Stuckert / Presidência da República / Flickr)

Apesar do clima de tensão, os países conseguiram aprovar um acordo de livre comércio com o bloco europeu Efta, formado por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein


A 66ª Cúpula do Mercosul evidenciou um choque de visões entre os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Argentina, Javier Milei, sobre o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Em discursos com tons opostos, o presidente argentino criticou duramente a estrutura atual do Mercosul, que chamou de “camisa de ferro”, enquanto Lula defendeu a integração regional como estratégia para proteger a América do Sul diante das tensões do comércio global.

Na cerimônia de abertura da Cúpula do Mercosul, Milei voltou a condicionar a permanência da Argentina no bloco à flexibilização das regras comerciais, e ressaltou a necessidade de tornar o Mercosul uma plataforma de livre-comércio com menos normas e institucionalidade. Lula, por sua vez, destacou a importância política e estratégica do bloco para o fortalecimento da posição regional diante da chamada "guerra comercial" aberta pelos Estados Unidos, e anunciou que a presidência temporária brasileira pretende priorizar pautas como meio ambiente, inclusão digital e políticas sociais.

A promessa de Lula é ampliar a agenda do bloco para além do comércio, incluindo novos temas. Analistas ouvidos pela reportagem, no entanto, consideram esse movimento difícil, diante da resistência argentina e das limitações fiscais brasileiras. "Lula vai tentar fortalecer a institucionalidade e avançar em pautas sociais e ambientais, mas será um desafio, porque os países da região não têm recursos para grandes projetos e o Brasil, mesmo sendo o paymaster [principal financiador] do bloco, enfrenta suas próprias restrições", afirma o cientista político Elton Gomes.

Apesar do clima de tensão, os países conseguiram aprovar um acordo de livre comércio com o bloco europeu Efta, formado por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein. O acordo, segundo Gomes, é típico da chamada "cooperação temática setorial", em áreas em que não há grandes divergências, como comércio e questões técnicas.

Lula e Milei têm concepções antagônicas sobre política externa 

As tensões entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Javier Milei, evidenciadas na Cúpula do Mercosul, são reflexo direto das concepções antagônicas na política externa adotadas por Brasil e Argentina. Para o cientista político Elton Gomes, as diferenças transcendem o campo retórico e indicam projetos opostos para o futuro do bloco.

"Milei adotou uma postura muito crítica e incisiva, questionando a própria estrutura do Mercosul e condicionando a permanência argentina a mudanças substanciais. Já Lula segue a tradição desenvolvimentista latino-americana, vendo o bloco como instrumento de proteção econômica e fortalecimento institucional da região", afirma.

O doutor em Ciência Política Leandro Gabiatti também destaca esse contraste. Segundo ele, os discursos de Lula e Milei caminham em direções opostas: "Enquanto Milei aponta problemas decorrentes da política tarifária do Mercosul, Lula exalta a força do bloco como ferramenta estratégica para negociar com outros países diante da guerra tarifária aberta pelos Estados Unidos".

Apesar do tom elevado das divergências, há pontos de convergência. Como observa Gomes, ambos os governos reconhecem a importância de manter a Argentina no bloco. "Não existe Mercosul sem a Argentina. Esse é um ponto de consenso. Mesmo com retóricas distintas, há um reconhecimento de que a ruptura seria desastrosa para o bloco e para as relações comerciais bilaterais", ressalta.

Por outro lado, o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida avalia que, na prática, a ameaça de saída da Argentina do Mercosul não se sustenta economicamente. "A Argentina se beneficia do mercado brasileiro, que é muitas vezes maior do que o argentino. Essa discórdia não tem muito sentido prático", afirma.

Para ele, as posições públicas podem atender a interesses internos ou narrativas ideológicas, mas, no plano comercial, a interdependência entre os dois países e a relevância estratégica do bloco tornam improvável qualquer rompimento efetivo.

Na Argentina, Lula se encontra com ex-presidente condenada por corrupção

Durante sua passagem por Buenos Aires para a cúpula do Mercosul, Lula fez questão de se encontrar com a ex-presidente Cristina Kirchner, que cumpre prisão domiciliar desde 17 de junho. A ex-presidente foi condenada a seis anos de prisão por corrupção. A visita de Lula precisou, inclusive, ser autorizada pela Justiça argentina.

Lula e Cristina compartilham uma trajetória política ancorada na defesa de políticas públicas de combate à pobreza, fortalecimento do Estado e integração regional soberana — justamente o oposto do projeto de Milei, que tem feito duras críticas ao chamado "populismo de esquerda" que dominou parte da América do Sul nos últimos 20 anos.

Mais do que um encontro de antigos aliados, a visita foi um sinal claro de que, além da divergência sobre o modelo de integração econômica no Mercosul, existe um descompasso político-ideológico evidente entre Lula e Milei.

O cientista político Elton Gomes lembrou que os Kirchner foram aliados de Lula mesmo quando ele estava preso. Para Gomes, apesar de "pegar mal", a visita do petista à ex-presidente argentina é uma questão de gratidão pessoal, o que ele classificou como "solidariedade ideológica".

"O maior dano gerado à imagem do presidente é junto à parcela considerável da opinião pública brasileira que já o rejeita. Uma crescente parte do seu próprio eleitorado que perdeu a confiança no líder e no seu governo, conforme demonstrado categoricamente nas mais recentes pesquisas de opinião realizadas no país", afirma o cientista político.

Ao mesmo tempo, Lula não teve um encontro bilateral com Milei nesta ida à Argentina. Essa é a segunda vez que os presidentes se encontram, mas não compartilham agendas. Quando Milei esteve no Brasil para a cúpula do G20, em novembro de 2024, da mesma forma, não teve agenda bilateral com Lula.

Antes disso, o presidente da Argentina também esteve no Brasil em julho de 2024, quando participou da conferência conservadora CPAC (Conservative Political Action Conference). Na oportunidade, Milei se encontrou com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e fez duras críticas aos governos socialistas da América do Sul. Ele também apontou perseguição a nomes da direita em diversos países, inclusive no Brasil.

Além disso, o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida aponta que Lula tem enfatizado suas amizades com ditadores. Ele lembra que, em maio, o petista visitou o ditador russo Vladimir Putin para as celebrações do "Dia da Vitória", o que o aproximou ainda mais do país, mesmo no contexto da invasão à Ucrânia.

Almeida também cita que Lula resolveu abrigar a esposa do ex-presidente do Peru Nadine Heredia, condenada a 15 anos de prisão por lavagem de dinheiro qualificada, em razão do recebimento de propinas tanto do ex-ditador venezuelano Hugo Chávez quanto da Odebrecht. Neste contexto, para Almeida, a visita de Lula à Cristina Kirchner confirma a "conivência partidária e ideológica [de Lula] com seus supostos aliados".

Elton Gomes avalia ainda que o fato também causa um prejuízo de imagem junto aos parceiros das democracias liberais do Ocidente capitaneadas pelos EUA, notadamente entre países europeus. "[Lula] passa a impressão de alguém com uma agenda ideológica e pessoal que se sobrepõe às questões legais e institucionais; para quem vale mais a lealdade aos correliginários de bandeira política do que a Justiça", destaca Gomes.

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